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Já escrevi no passado que a obra de Daisy Xavier trai a vontade,
tão atual, de tudo catalogar, esquadrinhar, delimitar. Em uma época que
apregoa a precisão e a eficácia, seus trabalhos recordam a falácia contida
sob a vontade voraz por controle, segurança e resultado. Dando um passo
além nessa hipótese, afirmo que a produção da artista faz mais um desvio
em relação a um traço marcante da atualidade, qual seja, o de um mundo
que se recusa a acolher ambiguidades ou matizes. Não há espaço para
“mas”, “porém”, “talvez”, “será?”. As hesitações devem ser descartadas em
favor de certezas e afirmações categóricas. A obra de Xavier caminha
justamente na contramão de tais características do nosso presente.
A exposição “do AR para LUZ” apresenta quatro séries de
trabalhos que, juntas, traçam as linhas de um território movediço, ou seja,
aberto a reversibilidades, mutações. O ponto de partida da mostra se
encontra no conjunto nomeado de “Pequenas gravidades” (2016). Aqui,
veem-se telas de grande e pequeno formato sobre as quais a artista
introduz um elemento essencial de sua poética: a rede. A superfície planar
é envolvida por fios metálicos que formam relevos, desenhos ondulatórios,
movimentos que se contrapõem à rigidez bidimensional do quadro. A rede,
assim como a água, não deixa precisar o que está dentro ou fora. Borra as
fronteiras, deflagra o trânsito, sem definir o nome do destino. Ou seja,
guarda a potência de suspender dualidades, binarismos, em favor de um
terceiro que descortina a chance de atravessamentos. O partido pelo
indiscernível, por algo que escapa ao enquadramento, parece ser fruto da
recusa em forjar uma possível ordem. Ordem incompatível com um
inconsciente que, como a água, é fluido, não admitindo sinalizações
exatas, tampouco definições estanques.
Nesse sentido, a rede de Xavier pode ser vista como o oposto da
grade moderna. A historiadora Rosalind Krauss escreveu linhas célebres
a respeito do grid: “A grade anuncia um desejo de silêncio da arte moderna,
sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso. Não se poderia nunca
ter escolhido solo menos fértil. Desenvolvimento é precisamente ao que a
grade resiste. Aplanada, geometrizada, ordenada, ela é antinatural,
antimimética, antirreal. É como a arte se apresenta quando dá as costas à
natureza.”i Poderíamos trocar a palavra natureza por inconsciente e
chegaríamos às redes de Xavier.ii A grade moderna foi uma espécie de
símbolo maior da abstração geométrica que marcou certa produção da
primeira metade do século passado. Em sua assepsia, em sua
regularidade, evocava o ideal racionalista que norteou a modernidade na
Europa para o qual o progresso seria alcançado por meio da razão.
Assim, enquanto a trama discursiva da grade privilegiava as
formas geométricas, pois estas seriam uma pura manifestação da
racionalidade, sem relação com as formas naturais ou com o inconsciente,
os voos ondulatórios das redes de Xavier nos endereçam uma experiência
diversa. Com os fios metálicos, a artista não desenha a repressiva grade,
mas sim sombras e traçados fluidos perpassados por desvios capazes de
expandir o espaço frio e bidimensional da tela. Diante desses trabalhos,
somos convocados a nos relacionar não somente através da retina, mas
de corpo inteiro. Caso façamos um leve deslocamento, e com isso a nossa
mirada passe a ver de soslaio, temos simultaneamente a mesma e uma
outra obra. Ou seja, estamos diante de um espaço movediço que se
redesenha a cada movimento.
Esse diálogo entre a rede e o plano ganha um novo capítulo com
os trabalhos que compõem a série “Espaço imediato” (2019), nos quais
fios metálicos pousam sobre a tela, erigindo arquiteturas angulosas
que ganham a companhia de fios de lã alaranjados. Se as ondas
de “Pequenas gravidades” cedem lugar para formas agudas,
permanece o jogo que desfaz a planaridade. As redes escapam
do quadro, formando desenhos no espaço. Aqui, o vazio e o ar
são tão importantes quanto o cheio e o sólido. Notem que a lã,
originalmente maleável, surge tesa, mimetizando a haste de
metal, enquanto a trama metálica adquire uma flexibilidade
insuspeitada.
“Espaço imediato”, por sua vez, dialoga com a série inédita de
pinturas, “HÁ COR” (2020), na qual a artista faz um intenso uso cromático,
algo raro em sua trajetória. Se, em “Espaço imediato”, metal e lã forjavam
um contraponto no qual os papéis originais de cada material eram
subvertidos, em “HÁ COR” formas agudas contrastam com a leveza
produzida pela mescla entre aquarela e acrílica. Já a repetição, tão
presente em sua obra, comparece através da multiplicação de um mesmo
desenho, quase-vetores de seis pontas que se sobrepõem deflagrando
uma multiplicidade de fragmentos que parecem flutuar no quadro. Entre as
redes metálicas etéreas e as telas hipercoloridas, Xavier desenha uma
passagem do AR para LUZ.
Não raro, algumas obras da artista têm o seu início com
experimentações prosaicas em seu ateliê. Foi o caso desses trabalhos que
começaram a ser realizados logo depois do início da pandemia de Covid-
19, ou seja, um momento no qual tudo ao redor exalava extrema tensão. Acor começou a encontrar como primeiro destino elementos ordinários do
ateliê, tais como tijolos, galhos, hastes de metal, fragmentos de madeira.
Dali, foram para o plano das telas. Notem, não são cores quaisquer. Mas
sim azuis, amarelos, magentas, verdes. Cores abertas, solares,
luminosas.iii De algum modo, mesmo que não intencional, se dava ali uma
espécie de contraponto em relação a um presente grave, marcado de
forma indelével pelo signo do peso.
Esse processo que em seu princípio teve a nota da gratuidade,
do gesto lúdico de brincar com a luz, com o tempo passou a ganhar uma
feição que o alinha à poética da artista. Essas telas nos endereçam uma
vez mais a aproximação entre polos distintos com vias à construção de um
terceiro lugar. Entre a beleza e a gratuidade das cores e a tensão e rigidez
dos vetores/colmeias/redes, entre a precisão e a opacidade dadas pela
acrílica e o acaso e a transparência proporcionados pela aquarela, “HÁ
COR” gera uma vez mais um território indeterminado e móvel. Pois aqui o
fascínio incontornável do evento cromático não encontra morada em
alguma espécie de calmaria dócil, mas, ao contrário, em uma
multiplicidade agonística de ângulos que apontam para diversas direções,
não nos deixando entrever uma borda ou ponto de repouso.
Completam a exposição os trabalhos reunidos sob o nome de
“Sobre como as coisas caem”. Aqui, telas verticais apresentam uma
especulação recorrente na produção de Xavier, aquela que versa sobre o
equilíbrio tênue que permeia a nossa experiência no mundo. Pó de
ferrugem, chapa de latão, ácido e ecoline forjam pinturas que, em diálogo
com a gravura, desvelam cubos vazados tecidos em metal cujos vestígios
guardam a memória de diferentes quedas.
Estamos diante de um gesto caro à obra da artista. Certa vez,
um vídeo flagrou poeticamente uma casa sendo demolida; em outra,
móveis se tornaram esculturas à beira de uma possível queda – mesas,
cadeiras, cômodas, gavetas se esgueiravam buscando uma sustentação
que se revelava ao mesmo tempo exata e precária, firme e frágil. Tal
equilíbrio sutil era sublinhado pelo fato de garrafas de vidro azuis atuarem
como pontos de sustentação das peças. Vidro que tem na sua origem o
estado líquido, torna-se um sólido e encarna por toda a vida a iminência
da quebra.
Se o título “Sobre como as coisas caem” tem como referência
o livro Sete breves lições de física, de Carlo Rovelli, o interesse da artista
pelo repertório das quedas inclui o que diz respeito às ciências exatas,
como a lei da gravidade, mas o ultrapassa. Desde a perda de referências
que marca a turbulenta experiência contemporânea, passando por
abismos, corrosões, desamparos, diversas são as modalidades de
“quedas” traduzidas pela poética de Xavier e que encontram mais um ato
nos cubos – essas formas comumente ligadas à solidez, perenidade,
exatidão – que se põem a cair.
A primeira vez que tomei contato com esses trabalhos foi através
de uma troca de e-mails com a artista, datada de outubro de 2019. Partilho
aqui a minha parte dessa prática epistolar na era digital. Havia acabado de
ler uma entrevista da poeta Ana Martins Marquesiv na qual um certo trecho
me parecia conversar com questões postas em “Sobre como as coisas
caem”. Enviei para Xavier a seguinte passagem da fala de Martins: “A
literatura, e a poesia em particular, não vai nos dar respostas ou
programas, nem vai nos dar acesso a algum conhecimento sistemáticosobre o mundo, mas ela pode dar forma à nossa perplexidade, aos nossos
medos, ao nosso desejo, aos nossos desequilíbrios e aos desequilíbrios
do mundo. A poeta Luiza Neto Jorge tem um verso muito bonito que diz ‘O
poema ensina a cair’. O poema, se for um bom poema, vai nos ensinar a
cair, vai gerar desconhecimento, dúvida, hesitação, vai complicar a vida,
nos tornar mais inquietos, mais desamparados, mas vai também nos
convidar a ver o mundo de uma forma mais complexa, a mudar a
compreensão que temos de nós mesmos e dos outros.”v
Em uma época na qual até o campo da arte, esse campo que
deveria nos endereçar alguma opacidade, alguma indeterminação, tantas
vezes se revela um lugar no qual encontramos aquilo que já prevíamos, ou
seja, no lugar de perguntas, respostas, a obra da artista faz o percurso
contrário. Em um mundo no qual tudo ao redor parece falhar – o clima, o
capitalismo, a democracia, as gastas epistemologias ocidentais, as falsas
promessas tecnológicas –, Xavier parece nos dizer que não se trata de
tentar consertar a falha, tampouco de escapar dela, mas sim habitar a
falha, “permanecer com o problema”.vi
Acompanhando Martins, podemos afirmar que os trabalhos de
Daisy Xavier, como um bom poema, nos ensinam a cair. Estamos aqui em
um espaço de indeterminação que não elimina o desamparo, ao contrário.
O encontro com a sua obra nos desloca para um terreno movediço que
abriga as quedas, as falhas, as hesitações, tornando assim mais inquieta
e complexa a experiência com o mundo, os outros e nós mesmos.
iiv
Rosalind Krauss, Grades, 1978. Ver:
<https://textosetextos.wordpress.com/2014/11/21/grades-rosalind-krauss-1978>.
ii Vale notar como a artista por vezes busca nas formas da natureza a morada da sua
geometria; avencas e casas de vespas podem compor o seu repertório de
geometrias/arquiteturas sensíveis.
iii No começo de sua trajetória, Daisy Xavier olhava com atenção e admiração a obra do francês
e exímio colorista Henri Matisse (1869-1954). Em conversa com a artista, lembramos do seu
nome para pensar o retorno à cor nessa nova série de trabalhos.
São Paulo, agosto de 2021

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