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Da arte de se equilibrar numa ausência

Luisa Duarte

“A vida não é só isso que se vê / É um pouco mais / Que os olhos não conseguem perceber / As mãos não ousam tocar / E os pés recusam pisar”.i

Braços, coxas, costas, ombros. Da mãe, da irmã, da filha, da neta. Não, não é isso que o olho vê. É sim um amalgama indiscernível de peles, formas sobrepostas quase eroticamente, formando um contínuo. Há ali o tempo, passado, presente e futuro. Mas não, não é isso que as fotos deixam claro para a retina. Os tempos estão entremeados, impedindo a linearidade mais óbvia. A cronologia foi desfeita. Já não discriminamos com precisão a origem primeira, nem mesmo as partes do corpo, e não é possível afirmar quem é mãe, irmã, filha ou neta. Esta série de fotografias, mas também a dos mendigos cobertos e a dos corpos enredados e submersos, todas elas desfazem a visualidade objetiva e as definições claras, em favor de uma outra coisa, criando zonas permeáveis, de difícil classificação. As obras de Daisy Xavier traem a vontade, tão atual, de tudo catalogar, fichar, esquadrinhar, delimitar. Esse partido pelo indiscernível, por formas ambíguas, por algo que escapa ao enquadramento, parece ser fruto da recusa em forjar uma possível ordem. Ordem incompatível com um inconsciente que, como a água, é fluido, não admitindo sinalizações precisas, tampouco definições estanques.

Tal gramática da fluidez, do trânsito contínuo, se faz também presente no vídeo “Passantes”, realizado em conjunto com Célia Freitas. Temos aqui duas projeções simultâneas, em um jogo de espelhamentos contraditórios, formando um rosto estranho – o estranho surge diante da mutação de algo que, um dia, nos foi familiar. De um lado a violência de uma casa (da natureza do que é familiar) sendo demolida, do outro, a delicadeza de um corpo que passa suavemente por entre redes de cobre. A escavadeira não possui olhos, arrebenta tudo que está a sua frente sem critérios. Já o corpo mede cada gesto, cada pisar, escolhe o caminho, enquanto se mistura na trama. As artistas criam em “Passantes” diversos duplos, numa espécie de simetria dos desiguais, para chegar a uma terceira coisa, um lugar neutro, indiferenciado.

A rede, assim como a água, não deixa precisar o que está dentro ou fora. Borra as fronteiras, deflagra o trânsito, sem definir o nome do destino. O ato de demolir também abre, ao seu modo, passagens. Deixando o caminho livre. Aos poucos percebemos que entre a violência da demolição da casa e a delicadeza do corpo que flana por entre as redes pode haver um insuspeito atravessamento.

Portas desabam, escadas vêm abaixo, a arquitetura que ali existia dá seus últimos suspiros e todo este despedaçamento de uma história afetiva é registrado de maneira objetiva. Nos momentos em que a casa ainda está de pé a câmera à percorre de dentro, suas partes são tratadas como se fossem uma pele, feita de chãos, tetos, escadas, mármores, madeiras. Tudo fitado de bem perto, sugerindo uma intimidade que, entretanto, não se converte em um olhar subjetivo. A câmera segue em linhas retas, a edição busca vetores, setas, que vão para todos os lados e se chocam, provocando embates entre todas as partes. Vemos padrões de pisos, azulejos, que, dali a pouco, serão uma massa avessa a diferenciações, meio cinza, meio turva, pura poeira.

Dos sons secos e graves ao ruído de água corrente, continuam a se misturar violência e delicadeza. Aquele corpo sobreviveria àquela brutalidade? Uma janela despenca, uma cortina de pó toma conta da cena. Do outro lado o corpo passa por entre as redes, indo, é possível imaginar, ao encontro da cortina de pó, que também não permite estabelecer os limites. O que nos parecia discernível já não é. Sim, o corpo e a casa podem coabitar. Mesclados, unidos, num só prolongamento arredio a definições, partições. Fomos lançados para outro lugar. Onde não só olhos, mãos e pés não conseguem perceber, tocar e pisar, mas também as palavras não sabem onde pousar. Só restando equilibrarem-se numa espécie de ausência. Gesto mais próximo da vida do que muitos discursos pretensamente repletos de sentido. A obra de Daisy Xavier e Célia Freitas gira nessa voltagem, do que escapa, escorre, remetendo à experiência de embate com aquilo que falta, transita, não encontra chão... Desejo movente... À procura de um fim, sem fim.

 

i Versos de “Sei lá Mangueira”, composição de Paulinho da Viola e Hermínio B. de Carvalho.

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