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Fios da memória e do tempo

 

                                                                                                          Ligia Canongia

 

 

Dorival Caymmi, ilustre compositor popular brasileiro, criou a canção “Canoeiro”, personagem que bota e colhe a rede do mar, em ação repetida,  ação que se rebate nos próprios versos, com acentuada redundância. Essa atividade simples e sistemática, antes de falar do trabalho duro e cotidiano do canoeiro, fala da vida de um homem. O artista, como o canoeiro, tem suas questões recorrentes, que surgem como aparições obstinadas no conjunto da obra, mas que também falam do drama humano.

As redes são ícones constantes no trabalho de Daisy Xavier, coincidentemente tecidas por uma pescadora. No entanto, a rede e a água, imagens renitentes em sua poética, produzem questionamentos mais complexos, como o do princípio de dualidade, aqui transmutado em princípio de reversibilidade. Na obra da artista, as dicotomias se revertem em coordenadas tangenciais, em uma declaração contundente, embora delicada, de que tudo é fluência e volatilidade. A rede é uma figura que simula fronteiras que não se cumprem; através dela se vê o outro lado, o espaço além, o que não se deixa ser enredado. A rede não delimita o dentro e o fora, o avesso e o direito, o aqui e o acolá. Ela é, por excelência, a imagem simbólica do atravessamento, da ultrapassagem, livre das oposições que regulam os pares dicotômicos do conhecimento.

Presente em grande parte das obras de Daisy Xavier, a rede é ainda um modelo para a indistinção das coisas, para a veladura impossível das contradições, e para o caráter ilimitável dos espaços e do tempo. Figura simples na tessitura de sua malha, esse ícone persistente tem a potência de questionar a determinação estática dos volumes e das formas, apresentando-se, ao inverso, como uma energia ondulatória e flutuante. A rede como água.

As matérias de baixa densidade física interessam à artista, não apenas por corroborarem a trama lógica da obra, e por aderirem à delicadeza de seus instrumentos, como por reforçarem o discurso da mobilidade entre as coisas e a dinâmica de sua eterna mutação. A imagem da água surge e assume, então, o caráter eminente da diluição das formas, que se impõem fora das medidas, das balizas e dos limites normativos da realidade. Para Daisy Xavier, a arte e o inconsciente viajam em campos líquidos, volúveis e incomensuráveis, onde as coisas estão em constante movimento, deslizando numa fita unilátera, e criando sentidos que se perdem e se reencontram numa espiral extraordinária.

Na exposição do Paço Imperial do Rio de Janeiro, a artista refaz com algumas séries de trabalhos o percurso dos últimos quinze anos de carreira, esclarece o desenvolvimento e a recorrência de suas questões ao longo do tempo, culminando nas duas séries recentes: “Natureza em expansão” e “Pequenas gravidades”

“Natureza em expansão” torna reversível, uma á outra, a natureza e sua transcrição na cultura, mixando simultaneamente formas iguais, mas em matérias ora naturais, ora artificiais. Folhas mortas e galhos finíssimos de avenca são chamados a responder por essa figuração indecisa e permutável, quebrando os parâmetros que isolam os dois vértices, e perturbando a clareza da percepção. Galhos secos e naturais de avenca se desenvolvem no espaço como linhas aéreas de um desenho, fundidos em continuidade às mesmas formas, só que em prata, ouro e latão. Com inteligência ardilosa, mas na potência máxima de sua sutileza, essa série aproxima-se da ideia da rede pela fragilidade de suas tramas, e pelos vazios que assume como matéria significante. Em alguns trabalhos, realizados sobre suportes bidimensionais, os galhos se lançam para fora do plano, como plantas vivas que crescem desordenadamente, em busca de espaço e respiração.

Em “Pequenas gravidades”, Daisy Xavier expõe telas envolvidas por redes de fios metálicos, que se movimentam como ondas líquidas sobre o plano, projetando sombras e criando uma convivência, ao mesmo tempo pacífica e conflitante, entre o bi e o tridimensional. Novamente, vem à tona a reversibilidade dos estados da matéria, assim como a reversibilidade dos espaços, das normas, dos códigos e, por extensão metafórica, dos limites da vida humana. Interessante ainda é a própria percepção móvel que se tem dessas obras, cambiante conforme a posição do observador e a mudança de seu ponto de vista. Tudo muda, a cada instante. O que as redes fingem camuflar, elas entregam aqui ao espectador: a travessia fluída entre os espaços.

Também nessa série, a artista realiza assemblages, ao sabor dadaísta, com elementos naturais, como pedras, conchas e colmeias de abelhas, mesclados a objetos industriais, mas sempre residuais, em cacos ou aos pedaços. Caóticas, porém refinadas, essas pequenas montagens parecem relíquias arqueológicas descobertas no fundo do mar, tesouros protegidos por redomas de vidro ou redes metálicas, vindas dos confins de um mundo imaginário. A confluência harmônica de peças díspares, de diferentes procedências e sem raízes, elucida, mais uma vez, o atravessamento da alteridade, a possibilidade de flutuação no caráter definidor e definitivo das coisas e dos discursos, e a maleabilidade dos sentidos. Nas esculturas da série “Pequenas gravidades”, a artista ainda inclui lentes de aumento em meio aos arranjos de outros objetos, produzindo mais um distúrbio na percepção. Com as lentes, o espectador se depara com o crescimento repentino e instantâneo da escala, o que não apenas contradiz o formato original e global do assemblage, como retorna à questão da volatilidade das formas e do olhar.

As esculturas de Daisy Xavier, esses seres de pequeno porte, tênues e transitivos, se assemelham a flashes de memória reconstituídos em emaranhados subterrâneos, fora da ordem narrativa e linear, guardados secretamente em algum lugar desconhecido, mas que se desnudam, agora, ainda que à luz da magia e da ilusão.

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